Febre do Cerrado, 2008

2008
Se fotografar é apropriar-se da coisa, em si, apropriar-me de fotografias é apropriar-me duplamente da coisa, isto é: da coisa, em si, e da cópia da coisa. Deve ser considerado como uma ‘possessão dupla'. O redemoinho -fenômeno que surge e se desfaz em segundos e, obviamente, difícil de fotografar- tem grande carga simbólica no sertão mineiro: é visto como uma espécie de materialização do demônio. Partindo desse princípio alegórico, fotografar um redemoinho é como fotografar o próprio demo e cabe a nós, criadores e expectadores, fazermos parte desse pacto.

Em 2008 eu quis conhecer a região do sertão mineiro que inspirou meu ilustre conterrâneo João Guimarães Rosa e, lá, fotografar redemoinhos. A viagem não se realizou; então, empreendi uma grande pesquisa, entre fotógrafos -amigos, desconhecidos, famosos- procurando aqueles que já tivessem conseguido realizar essa façanha e que pudessem compartilhar comigo e com o mundo, não apenas a documentação daquele fenômeno natural e efêmero, mas a sensação de fotografá-lo. Como? Através de seu próprio relato sobre aquele momento mágico, algo que o aproximasse da própria magia do Grande Sertão Veredas. O depoimento do outro é um agente ativador: compartilhar histórias é aproximar o fotógrafo da literatura. O sertão do romance virou o romance no sertão. O que há de mais próximo do demo do que o delírio da febre ou da paixão?

Durante a pesquisa em busca das imagens, ouvi mais histórias sobre redemoinhos passados e perdidos do que vi redemoinhos efetivamente fotografados. Mesmo que nada de substancial tenha mudado na paisagem, percebe-se que houve uma presença, ali, fugaz, como um calor súbito, um perfume ou acordes de uma canção. Mesmo que não reste uma imagem como testemunho, através do relato, da narrativa, fica a reminiscência, a mágoa, a cicatriz. O que resta de uma febre, senão a lembrança de que ela veio e se foi?

 



Savanna Fever

Rosângela Rennó
2008