Câmera obtusa, 2022-2023

Câmara, faiança vitrificada com elementos do repertório de Bordallo Pinheiro.

A ideia de fotografia como documento nasceu ligada ao princípio físico da câmara obscura, na medida em que tudo o que atravessasse espectralmente esse terreno mágico dentro do dispositivo fotográfico seria capturado para sempre numa superfície frágil (vidro, película ou papel). Esta prática está em vias de desaparecer, mas percebemos bolsas de resistência em certos objectos aparentemente inocentes do nosso quotidiano. A persistência da imagem da máquina fotográfica em objectos não fotográficos significa que podemos ter de proteger a origem da fotografia do esquecimento, numa altura em que a produção de imagens parece estar sujeita à comunicação entre utilizadores de telemóveis. Sempre quis criar um desses objectos falsamente inocentes que imitam uma máquina fotográfica mas não tiram fotografias, e com Bordallo Pinheiro surgiu a ocasião perfeita. No cenário representado, o animismo da fauna de Bordallo invade uma máquina fotográfica Rolleiflex reproduzida em faïence, com uma dúzia de animais a invadir e a fugir de um aparelho que tenta resistir à ideia de ser obsoleto. Sem saberem muito bem como se comportar, podem ter perdido a concentração ou mesmo a noção da sua utilidade. Na epifania destes animais fantásticos, não importa se entram ou saem da câmara obscura, nem quem é o sujeito ou a representação, o criador ou a criatura. O instantâneo tornado permanente é para persistir enquanto o feitiço não for quebrado, antes que o mundo acabe. 

Rosângela Rennó


Obtuse camera, 2022 - 2023

Camera, vitrified faience with elements from Bordallo Pinheiro’s repertoire.

The idea of photography as a document was born linked to the physical principle of the camera obscura, to the extent that everything that spectrally crossed that magical land inside the photographic device would be captured forever on a fragile surface (glass, film or paper). This practice is on the verge of disappearing, but we perceive pockets of resistance in certain apparently innocent objects of our daily lives. The persistence of the camera image in non-photographic objects means that we might have to protect the origin of photography from oblivion, at a time when the production of images seems to be subject to communication between cell phone users. I have always wanted to create one of those falsely innocent objects which imitate a camera but don’t take any pictures, and with Bordallo Pinheiro the perfect occasion has presented itself. In the scenario depicted, the animism of the Bordallo fauna invades a Rolleiflex camera reproduced in faïence, with a dozen animals invading and escaping from a device trying to resist the idea of being obsolete. Without knowing very well how to behave, they may have lost focus or even have lost the notion of their usefulness. In the epiphany of these fantastic animals, it doesn't matter if they enter or leave the camera obscura, nor who is the subject or representation, creator or creature. The snapshot made permanent is meant to persist as long as the spell is unbroken, before the world ends. 

Rosângela Rennó